Das Bets ao Tigrinho; entenda a crise das apostas online no Brasil
Em um país que se digitalizou antes de se alfabetizar, a promessa de dinheiro fácil vira vício e prejuízo

Foto: Reprodução/Google
120 bilhões de reais foi a quantia movimentada pelo mercado de apostas no Brasil no ano de 2024, o que registra um crescimento de 135% em relação a 2023, de acordo com informações do Data Hub. Esses números colocam o Brasil como o 7° maior mercado de apostas online do mundo e como o primeiro que mais visita sites de apostas, representando 15% do tráfego em bets no mundo, como mostra o site “H2 Gambling Capital”.
A raiz do problema
As casas de apostas online se popularizaram no cenário nacional a partir de 2018, quando as apostas de cota fixa - modalidade onde o apostador sabe, no momento da operação, qual será o valor do seu possível ganho caso acerte o resultado - foram legalizadas. Contudo, em um país de 200 milhões de pessoas e que respira futebol, a falta de regulamentação sobre essas práticas foi o motor ideal para que o mercado das apostas se tornasse uma potência econômica e publicitária, mas de forma completamente desordenada.
Até este ano, a grande maioria dos sites de apostas - as “bets” - operava em jurisdições estrangeiras, ou seja, sem supervisão oficial do Brasil e não estando sujeitos às leis locais ou impostos. Depois de 6 anos de funcionamento e crescimento livre de regras, o mercado das apostas foi regulamentado no Brasil no dia 1° de janeiro de 2025 pelo presidente Lula, que chegou a acusar seu antecessor - Jair Bolsonaro - de inação sobre o tema.
Dentre as medidas tomadas, as bets precisaram registrar uma entidade local e solicitar licenças, cada uma no valor de 30 milhões de reais, até setembro do ano passado, o que bloqueou cerca de 3.400 sites que não cumpriram as exigências. Dessa forma, restaram pouco mais de 260 sites acessíveis, que precisam cumprir com restrições à promoção de apostas por influenciadores, limites na publicidade e proibição do uso de cartões de crédito em sites de apostas.
A regulação vir de forma tardia foi um fator decisivo para que esse mercado penetrasse de forma violenta na sociedade brasileira, atingindo cerca de 13% da população com 16 anos ou mais - o equivalente a 22 milhões de pessoas - em 2024, de acordo com a publicação “Panorama Político 2024: apostas esportivas, golpes digitais e endividamento”.
“A casa sempre vence”
Para entender como o mercado das apostas cresceu tanto, é preciso - primeiramente - saber a diferença entre as apostas em eventos esportivos e em jogos de azar, também muito populares no país, para depois compreender o funcionamento das bets e como elas lucram.
O método utilizado pelas bets para lucrar com apostas esportivas consiste basicamente na diferença entre o valor real do evento e a cotação efetivamente oferecida pela casa; essa margem de diferença é um dos mecanismos de lucro das empresas. Na média, o lucro gira em torno de 4% a 6% do valor apostado pelos jogadores. Ou seja, a casa quase sempre terá lucro sobre seus apostadores.
Sandro Alex (23), morador do bairro de Ondina e estudante de Jornalismo, afirma ter lucrado cerca de 6 mil reais nos últimos 3 meses com apostas esportivas. O jovem conta como consegue ser uma exceção e não perder dinheiro com as apostas.
“Quem quer ser lucrativo precisa ter muita mentalidade, cuidar do dinheiro, assistir muitos jogos, estudar muito o esporte e estatística para poder lucrar, porque o número é simples, todo mundo conhece: só 1% dos apostadores são lucrativos a longo prazo. Então, tem que se diferenciar.”, explica Sandro.
Sandro também fala sobre a ilusão dos ganhos rápidos e fáceis que as apostas online causam nas pessoas, e alerta sobre os perigos da falta de conscientização sobre o assunto.
“A gente tem visto muitos casos de pessoas perdendo coisas grandes, perdendo poupança, perdendo herança em casa de aposta. [...] o brasileiro não costuma ser educado a fazer as coisas da forma certa. O brasileiro é educado a buscar vias rápidas, e se você buscar vias rápidas em apostas esportivas ou em cassinos, você vai se dar mal.”, afirma o estudante de Jornalismo.
Enquanto isso, plataformas de cassinos online, como o “Fortune Tiger” - conhecido como “Tigrinho” - tem semelhanças com os caça-níqueis tradicionais, conforme explica o professor André Lima, que atua nos cursos da área de Tecnologia da Informação na Universidade Católica de Brasília. O especialista adverte que é possível manipular os algoritmos para que os resultados sejam alterados, ou seja, controlar quando os apostadores irão ganhar ou perder.
Além disso, o professor fala que, independentemente de haver ou não manipulação, esse tipo de jogo de azar é, matematicamente, mais favorável ao cassino do que ao jogador. "Isso deixa o jogador viciado, porque ele ganha uma vez, ganha outra, e acha que sempre pode ganhar.".
Esse comportamento é reforçado pela psicóloga e psicanalista Ana Volpe, membro-filiada da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, que explica que esse mecanismo das apostas online libera dopamina no cérebro, neurotransmissor associado à motivação e ao prazer. Essa liberação gera uma sensação de euforia, incentivando o apostador à repetição de forma cada vez mais estimulante.
Washington Santos, morador do Nordeste de Amaralina, conta que já apostou no “Tigrinho” e na empresa Blaze, mas abandonou a prática após perceber como funciona o sistema de perdas e ganhos das plataformas.
“No Tigrinho e no Jatinho (Blaze) já perdi [dinheiro], mas não muito, porque eu vi que eram plataformas de só enrolar as pessoas. Elas liberam uns ganhos e depois tomam tudo de volta, aí eu deixei de jogar.”, explica Washington.
Infelizmente, muitas pessoas que começam a apostar não fazem como Washington e acabam caindo em um ciclo de dependência com as apostas. A linha entre a diversão e a compulsão é tênue e muito perigosa, e pode acabar com a vida dos apostadores.
“O cachê da desgraça alheia”
Atualmente, é muito comum ver patrocínios de bets e cassinos online espalhados em quase todas as esferas da sociedade, e não somente no cenário esportivo, onde ganharam força e projeção nos últimos anos. Uma das estratégias das casas tem sido captar clientes por meio dos grandes influenciadores digitais, personagens geralmente carismáticos e com uma base de seguidores sólida e extensa, ou de figuras públicas de grande aceitação social.
A ideia é conectar as pessoas ao produto - as apostas online - por meio de uma ideia de prosperidade financeira e sucesso de vida. Para muitos, faz sentido pensar que se uma celebridade faz e recomenda algo, indicando isso como o melhor caminho a ser seguido, então essa coisa é a certa a se fazer.
Dessa forma, recentemente é possível ver diversos influenciadores divulgando e fazendo campanhas publicitárias para casas de apostas, como Virgínia Fonseca e Carlinhos Maia. Ambos foram convidados pela senadora Soraya Thronicke (Podemos) - a relatora da CPI - para prestar seus depoimentos na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Bets.
A CPI foi criada no fim do ano passado para investigar "a crescente influência dos jogos virtuais de apostas online no orçamento das famílias brasileiras, além da possível associação com organizações criminosas envolvidas em práticas de lavagem de dinheiro, bem como o uso de influenciadores digitais na promoção e divulgação dessas atividades”.
Em seu depoimento, Virgínia negou que recebesse um percentual do lucro da bet a partir da perda de cada apostador influenciado por ela, o “cachê da desgraça alheia” como a modalidade ficou conhecida de modo informal. A declaração da influenciadora vai de encontro com uma reportagem da revista Piauí, publicada em janeiro deste ano, que revelou os termos do contrato entre Virgínia e a plataforma Esportes da Sorte.
De acordo com a matéria, a influenciadora teria recebido um adiantamento de 50 milhões de reais em dezembro de 2022 e ganharia 30% de tudo o que os apostadores perdessem ao acessarem o site por meio de seu link. O primeiro anúncio de Virgínia para a empresa foi realizado em janeiro de 2023, por meio de um story no qual ela fazia uma aposta. Segundo a reportagem, a ação atraiu 120 mil novos usuários à plataforma.
Foto: Nando Motta
O maior problema é que as apostas feitas nas propagandas são falsas, realizadas por meio de contas enviadas pela plataforma para que os influenciadores possam postar seus resultados positivos, como afirmou a própria Virgínia na CPI. Mais uma vez, a miragem da prosperidade rápida e fácil das apostas é vendida como água no deserto para os mais necessitados.
Em sua própria defesa, ela ainda trouxe para o debate uma situação que se torna cada vez mais gritante. “Eu também gostaria que a senhora chamasse aqui todos os times de futebol, todos os eventos patrocinados, todas as emissoras que têm [patrocínio de bet]. Tudo o que está no Brasil hoje; tudo tem bet.", afirma a influenciadora.
Virgínia não mentiu, apenas disse com outras palavras que essa questão não pode ser individualizada. Hoje, a crise das apostas no Brasil é um problema coletivo e estrutural.
A mesma reportagem da Piauí ainda cita valores recebidos por outras celebridades, como Gkay (1,4 milhão de reais por mês da Esportes da Sorte), Carlinhos Maia (40 milhões de reais anuais da Blaze) e Cauã Reymond (22 milhões de reais da Bateu Bet). Talvez não seja tão fácil levantar a bandeira dos princípios morais quando há uma proposta multimilionária sobre a mesa.
Gente não é número
A crise das apostas não atinge somente as parcelas mais pobres da sociedade, mas são esses que estão mais expostos aos impactos negativos dessas práticas no dia a dia. De acordo com dados do DataSenado, brasileiros com renda familiar de até dois salários mínimos foram os que mais apostaram (52%) ao longo de um mês. Na sequência, aparecem apostadores com renda familiar entre dois e seis salários mínimos (35%); e acima de seis salários mínimos (13%).
Além disso, a consultoria Strategy& aponta que o gasto com apostas já representa cerca de 76% das despesas de "lazer e cultura" das classes D e E. A situação torna-se ainda mais grave quando se observa que 37% dos apostadores afirmam já ter tirado dinheiro destinado a outras despesas para apostar.
Nesse sentido, a estimativa da Confederação Nacional do Comércio (CNC) é de que quase 2% da massa salarial dos brasileiros seja destinada ao mercado de apostas. 2% pode parecer pouco, mas essa quantia é responsável por colocar 1,3 milhão de brasileiros em situação de inadimplência e retirar 1,1 bilhão de reais do consumo do varejo nacional.
Parte do desaquecimento da economia está diretamente relacionada às atividades ligadas a apostas onlines, que podem reduzir 0,3% do PIB do Brasil este ano, apontou um relatório do Santander.
Para além do problema coletivo e do prejuízo financeiro causados pelo mercado das apostas na economia nacional, há também o prejuízo humano. O que começa como uma promessa rasa de diversão e enriquecimento rapidamente se torna vício e sofrimento para muitos.